terça-feira, 29 de maio de 2012

Dias de hoje

Escorre-me o espírito como grãos de areia numa ampulheta.
Lentos, compassados,
Até deixar uma campânula vazia e ressonante
Onde monossílabos se repetem e reflectem
Até ao infinito,
Como ultrassons num aquário
Em cujas águas estagnadas já não nadam peixes.

A obsessão assume o controlo
Enquanto as pancadas de Molière ecoam e a cortina sobe,
Mostrando sempre a mesma peça,
Os mesmos actores,
As mesmas falas.
E ecoa, ecoa...
Mil versões da obra são postas em cena,
Uma após outra,
Sem que a cortina alguma vez desça sobre os olhares cansados dos actores,
Sem deixar que as pálpebras quentes aconcheguem as pupilas
Dilatadas da demência.
Quando os holofotes, finalmente, morrem
Não restam forças para imaginar nada de novo...
Não resta sanidade nem presença de espírito.
Apenas vazio e ecos...
Apenas os mesmos cenários onde os mesmos actores
Exaustos, adormeceram aleatoriamente distribuídos
Pelo palco agora sombrio,
Em que as cortinas todos os dias sobem e não descem nunca.

E amanhã, quando os holofotes voltarem a iluminar
O teatro sem público,
Encenar-se-ão e representar-se-ão mais mil versões
Da mesma peça.
Mais monossílabos ressoarão na abóbada despida,
Reflectindo-se, interferindo, ressoando,
Orientados pela mesma encenadora
Obsessivamente corrigindo os discursos dos velados
Actores.

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